Tempestade de fogo
Apelidado de "Segundo Grande Incêndio de Londres" (por as suas dimensões lembrarem o Grande Incêndio de Londres de 1666), recordamo-lo a propósito da passagem dos 80 anos sobre o fim da II Guerra Mundial. Contextualizando, de 7 de Setembro de 1940 a 10 de Maio de 1941, sucederam-se 57 noites de bombardeamentos por parte da força aérea alemã contra a Grã-Bretanha, com vista à sua rendição: a temerosa campanha Blitz. Porém, foi em 29 de Dezembro de 1940 que ocorreu a maior ofensiva e, por conseguinte, o mais devastador incêndio. Durante todo o seu período, a Blitz causou danos nefastos em Londres e noutras principais cidades, mas, surpreendentemente, não afectou o moral dos ingleses. Um exemplo de resiliência para a humanidade.

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sexta-feira, 27 de junho de 2025

Todos nós temos um bombeiro na família

Pesquisa/Texto: Luís Miguel Baptista com Carlos Monserrate
Fotos: CML/Ana Luísa Alvim e Bombeiros Voluntários de Loures

"Todos nós temos Amália na voz", diz a canção de António Variações. E FOGO & HISTÓRIA afirma: Todos nós temos um bombeiro na família. Verdade seja dita - o que demonstra bem quanto o movimento cívico dos Bombeiros está enraizado na sociedade - não há família, não há figura pública que não se envaideça por ter tido um ou mais familiares ligados a uma associação/corpo de bombeiros. O grande comunicador Júlio Isidro é disso exemplo, referindo-o com frequente orgulho e emoção. Despertos pela curiosidade das suas memórias, procurámos saber dos feitos de seus antepassados e o resultado obtido foi surpreendente.



Sempre que tem oportunidade, o "Senhor Televisão" realça na sua página do Facebook o facto de ter tido bombeiros na família, nomeadamente seu bisavô, que trazia na farda a mais importante ordem honorífica portuguesa, a Ordem Militar de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, e ainda, um tio avô, Raul Izidro. 

As seis fotos individuais que abaixo reproduzimos, em tempo publicadas pelo próprio na mesma rede social, mostram-nos outros tantos garbosos "soldados da paz", os familiares do homem que, melhor do que ninguém, no panorama televisivo português, sabe valorizar e projectar a memória e a história colectivas.

Solidário com os bombeiros, em particular, na apresentação de espectáculos de beneficência, Júlio Isidro escreveu, no ano de 2017, por ocasião dos trágicos incêndios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos: 

"Tocaram as sirenes da solidariedade e unimo-nos porque das cinzas tem que brotar uma nova vida. Estamos todos juntos, artistas, apresentadores, produtores e técnicos para criar um momento mágico de amor pelas vítimas dos incêndios que queimaram vidas mas não reduziram a fumo a nossa enorme vontade de refazer. Num palco que será de todas as televisões e rádios, aqui e onde houver portugueses, iremos homenagear os que partiram, apoiar os que ficaram e agradecer a todos os que venceram esta guerra de tantas batalhas. Acompanhei emocionado a luta de homens e mulheres que têm como lema 'Vida por Vida' e senti um enorme orgulho pelos meus antepassados. O meu bisavô bombeiro, com a Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito, os seus irmãos e filhos, todos ostentando o apelido porque sou conhecido. Num tempo de tantas guerras, os nossos soldados da paz merecem o aplauso grato de um país inteiro." 

Não obstante o comunicador nunca mencionar o nome do bisavô, FOGO & HISTÓRIA procedeu ao cruzamento de dados e chegou à congratulante conclusão que se tratou de Francisco Rodrigues da Conceição (1820-1912), do Corpo de Bombeiros Municipais de Lisboa, destacada figura do serviço de incêndios da capital, na segunda metade do séc. XIX. Foi, sem dúvida, um notável do seu tempo, que é citado nos anais da história dos bombeiros portugueses. 

Ingressou na profissão de bombeiro em 8 de Abril de 1849, com a categoria de 2.º Patrão.

Sucessivamente promovido, ascendeu ao cargo de Vice-Inspector Geral dos Incêndios a 1 de Julho de 1886, por decisão da Câmara Municipal de Lisboa. 

No capítulo dos sinistros teve acção preponderante na dinâmica de socorro, arriscando a vida para salvar outras vidas, o que lhe valeu a justeza de abundantes louvores e altas condecorações. Ficaram provados, a título de exemplo, "os serviços que prestou em 18 de dezembro de 1878 por occasião do desmoronamento de Belem ajudando a roubar a uma morte quasi inevitavel um homem sepulto nas ruinas, fazendo o desentulho com perigo da propria existencia para tirar d'ellas os cadaveres dos infelizes operarios, victimas da horrível catastrophe, grangearam-lhe uma outra medalha que lhe foi entregue em sessão solemne da camara municipal em 19 do janeiro de 1879", descreve O Bombeiro Portuguez, folha quinzenal ao serviço da classe, na sua edição de 1 de Abril de 1881, que assim define o carácter do "illustre bombeiro": 

"Francisco Rodrigues da Conceição tem dado provas d'uma actividade e energia que o tornam sincera e cordialmente estimado pela população de Lisboa costumado a vel-o o primeiro ao perigo, o ultimo no descanso. A sua affabilidade natural, o seu caracter leal e franco tem-lhe acarretado a sympathia dos que com elle tractam e não deve ser menos grato para sua alma aberta e generosa a maneira como os seus subordinados o estimam e presam." 

Quando passou a Chefe da 2.ª Companhia, o que se verificou em 1 de Fevereiro de 1869, ficou sob a sua responsabilidade a área de maior cuidado da cidade, que compreendia a zona baixa (freguesias de Santa Justa, S. Nicolau, Madalena, S. Julião, Conceição Nova, Mártires e S. Paulo, às quais estavam destinadas as bombas números 5, 8 e 17, bem como atribuídos os carros números 1 e 7). 

A distintiva Ordem Militar de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito foi-lhe atribuída por decreto do Ministério do Reino, a 28 de Março de 1882, na sequência de uma proposta apresentada em sessão camarária reunida no dia 3 de Novembro de 1881, pelo Vereador Rodrigues Câmara, devido aos "muitos e valiosos serviços prestados" durante 32 anos de carreira. 

Relacionou-se, entre outros vultos, com o Inspector Carlos José Barreiros (reformador do serviço de incêndios de Lisboa) e o Inspector Guilherme Gomes Fernandes (expoente máximo do bombeiro português), tendo participado no 1.º Congresso de Bombeiros, realizado na cidade Invicta, de 28 de Junho a 1 de Julho de 1889, o que se encontra documentado em registo fotográfico.

Numa das evocações dos bombeiros da família, Júlio Isidro revisita o tempo de infância e, ao recordar a avó paterna, revela:

"Tinha os retratos na sala de vários senhores de bigodes retorcidos e brilhantes capacetes que eram o orgulho da minha avó. Eram seus tios, irmãos e primos, todos empenhados nessa missão de contribuir até ao limite da vida para a segurança da comunidade."

Com efeito, estamos na presença de destacados cidadãos que personificaram a tradição idealista e familiar associada à identidade cultural dos bombeiros portugueses.






"Acompanhei emocionado a luta de homens e mulheres que têm como lema 'Vida por Vida' e senti um enorme orgulho pelos meus antepassados. O meu bisavô bombeiro, com a Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito, os seus irmãos e filhos, todos ostentando o apelido porque sou conhecido. Num tempo de tantas guerras, os nossos soldados da paz merecem o aplauso grato de um país inteiro" 



Foquemo-nos agora na figura de Raul Vieira da Silva Rodrigues Izidro (1889-1955), fazendo uso, antes de mais, de preciosa informação a que tivemos acesso privilegiado, indispensável ao processo de pesquisa e compreensão dos laços de parentesco entre os biografados:

"Neto do saudoso Inspector dos Incêndios dos Bombeiros Municipais de Lisboa, Francisco Rodrigues da Conceição, 'O Velho Conceição', filho de António Rodrigues Izidro, Bombeiro Municipal n.º 10, de 1.ª Classe, sobrinho de José Rodrigues Ferreira, Bombeiro Municipal n.º 37, de 2.ª Classe, sobrinho de Fernando Augusto Soares, Comandante e fundador dos Bombeiros Voluntários de Buarcos (Figueira da Foz), sobrinho de Francisco Soares da Silva, Bombeiro Voluntário da Ajuda e Chefe dos Serviços de Saúde, e irmão de Henrique Rodrigues Izidro, Bombeiro Voluntário Lisbonense."

Esteve ligado aos Bombeiros Voluntários de Lisboa, nos quais principiou a actividade como Aspirante, em 15 de Agosto de 1911; aos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, transitando para estes a 8 de Junho de 1915; e aos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique - Cruz Branca, cuja admissão ocorreu no dia 30 de Junho de 1931.

Identificámo-lo numa foto que faz parte do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, datada de 3 de Dezembro de 1933, alusiva ao acto de imposição da Comenda da Ordem de Benemerência, no estandarte de Campo de Ourique. Ali figura, com enorme galhardia, na nobre função de porta-estandarte. Era então Bombeiro de 1.ª Classe. 

À mesma na Cruz Branca, em 1934, já havia sido promovido a Chefe, chegou a exercer as funções de Comandante Interino, por ordem do Batalhão de Sapadores Bombeiros de Lisboa, sendo louvado pela dedicação demonstrada.

Nos últimos anos de vida, Raul Izidro pertenceu ao Corpo de Bombeiros Auxiliar de Loures, actuais Bombeiros Voluntários de Loures, primeiro na qualidade de adido e depois enquanto Ajudante Honorário. 

Em carta de 6 de Junho de 1945, dirigida ao Comandante Guilherme Henrique Soromenho, que o nomeou, agradece a "honrosa distinção" e compromete-se a dispensar ao mesmo "sincera e leal cooperação". 

No mesmo Corpo de Bombeiros granjeou ainda o estatuto de benemérito, conciliando-o posteriormente com a situação de adido dos Bombeiros Voluntários da Ajuda.

"Ele tem sido, como voluntário, um trabalhador acérrimo, sempre pronto a acudir onde o dever chama, expondo a sua existência em prol do seu semelhante, com os olhos fitos na sagrada divisa 'Vida por Vida'." Foi deste modo que, a dada altura, definiram o Ajudante Raul Izidro.

A sua personalidade mereceu o reconhecimento de diferentes entidades, consubstanciado na atribuição de distinções honoríficas de relevo, designadamente, medalhas de mérito, filantropia e generosidade, por relevantes serviços prestados em incêndios, mas também aquando de movimentos revolucionários, epidemias, inundações e salvamentos de vidas e haveres.

Parece infindável a ligação da família de Júlio Isidro aos bombeiros, pois que também uma tia avó, Isaura de Lourdes, carinhosamente tratada por Babá, foi enfermeira nos Bombeiros Voluntários da Cruz de Malta, o que lembra com certa dose de humor: 

"E o que eu gostava de a ver fardada de branco com a braçadeira da Cruz de Malta, associação a que pertencia. Era nos dias em que estava de serviço na Feira Popular para tratar de feridos das garraiadas que lá se faziam numa mini praça, ou enfiar algodão com amoníaco pelos narizes daqueles que na tasca da vaquinha tinham bebido tanto quanto as volumosas tetas do animal que era feito de madeira e papelão."

Não é apenas inesquecível, no nome e no conteúdo, o programa semanal de Júlio Isidro, na RTP Memória. São de igual característica as memórias do apresentador e os exemplos de cidadania activa da linhagem de que descende, fragmentos de vida e alma que se fundem e se conectam com a história dos bombeiros e a história social de Portugal.


Destacadamente, o Ajudante Honorário Raul Izidro na fase do Corpo de Bombeiros Auxiliar de Loures