TRIBUTO - A presente imagem foi captada em Albergaria-a-Velha, no ano de 1969, e apresenta uma extensa e briosa formatura dos "BDA", Bombeiros do Distrito de Aveiro. Ao centro, vê-se o Governador Civil, Francisco Vale Guimarães, acompanhado do então Comandante dos Bombeiros Voluntários locais, José António Laranjeira, que mais tarde veio a ser Presidente do Serviço Nacional de Bombeiros. Através desta memória fotográfica, FOGO & HISTÓRIA presta simbólica homenagem a todos os BOMBEIROS PORTUGUESES que entre 15 e 19 de Setembro último foram mobilizados para combater os incêndios florestais que lavraram nas regiões Norte e Centro do país. De igual modo, evoca todos aqueles cuja vida o fogo ceifou, com destaque, por compreensíveis razões, para os quatro bombeiros atingidos no cumprimento da sua missão: João Silva, de São Mamede de Infesta, e Paulo Santos, Susana Carvalho e Sónia Melo, de Vila Nova de Oliveirinha.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

O salva-vidas Relvas, a humanidade do inventor

Pesquisa/Texto: Redacção F&H
Foto: F&H

Carlos Relvas (1838-1894), figura talentosa e filantrópica dos finais do século XIX, destacado pioneiro da fotografia em Portugal, inventou um revolucionário barco salva-vidas, que entendeu colocar à disposição dos Bombeiros Voluntários do Porto.
Uma carta dirigida ao então Comandante do Corpo de Bombeiros, o grande Guilherme Gomes Fernandes (1850-1902), de 14 de Janeiro de 1884, resgatada durante as nossas pesquisas e à qual atribuímos particular significado, documenta a excelência da acção.




O facto de Carlos Relvas ter presenciado cenas lancinantes de naufrágios na barra do Porto e o interesse de contribuir para a melhoria dos meios utilizados no socorro marítimo motivaram, em 1880, o início do estudo tendente à criação de um modelo de embarcação que fosse robusto e potente.

Ao fim de três anos de trabalho, mercê da sua inteligência e fortuna pessoal, criou um barco fora do comum, nomeadamente, com o fundo constituído em chumbo, processo seguido pelos actuais veleiros, o que impedia que se voltasse.

Passado à fase de projecto por Joel da Silva Pereira, do Porto, a construção esteve a cargo de José Paulino Ignacio, de Vila Nova de Gaia.

Foi, talvez, durante as permanências na sua casa-estúdio, riqueza arquitectónica da Golegã, que teve a oportunidade de amadurecer ideias, local onde dispunha de laboratórios e, com toda a certeza, revelou as fotografias que retratam diferentes perspectivas do protótipo.

A primeira experiência de navegação ocorreu na Foz do Douro e resultou num êxito, o que levou Relvas a contactar o Ministro da Marinha requerendo a intervenção deste no sentido de o seu invento ser examinado e, por conseguinte, adoptado como meio de salvamento.

"(…) experimentando ha poucos dias na Foz, o meu novo barco, tive a satisfação de certificar-me da sua estabilidade extraordinária, por vezes rasgando as ondas, e não se deixando impellir por ellas de modo a perder o espaço que tinha avançado. Os seus tripulantes de prompto adquiriram n’elle uma grande confiança, procurando os pontos mais embravecidos do mar”, fundamentou o inventor, acrescentando: “As condições d’esse novo salva-vidas, parece-me que bastante se aproximam das de um bom nadador que trespassa e vence ondas alterosas."

O governante deferiu prontamente o requerimento e nomeou uma comissão de examinação que veio a testemunhar o potencial da embarcação num ensaio realizado novamente na Foz, no dia 7 de Novembro de 1883.

O escritor Gervásio Lobato, também jornalista, entre outras ocupações na área da escrita, descreveu o momento para a revista O Occidente: "O mar estava de molde para essa experiencia. Agitava-se furiosamente, e erguia-se em grossas vagas junto da barra, pondo em perigo, ás vezes, os pequenos barcos que a ellas se atreviam."

O próprio Carlos Relvas seguiu como tripulante da embarcação, mais um piloto da barra do Porto e oito remadores.

Paralelamente, refere Lobato, "partiu também, para servir de comparação ao moderno barco, o antigo salva-vidas".

A prestação decorreu debaixo de grande emoção, sendo seguida, em terra, por uma multidão inquieta.

"Os barcos sumiam-se de vez em quando nas grandes cavidades das ondas. O salva-vidas antigo galgava essas ondas como uma casca de noz, o salva-vidas de Relvas furava-as, batendo-se com ellas, e sahindo sempre triunphante do combate, apezar de ter quebrado n'um dos encontros a canna do leme" - informa a edição de 21 de Janeiro de 1884, de O Occidente.

Salva-vidas Relvas: 1 - Vista de perfil; 2 - Experiência oficial; 3 - Vista de planta; 4 - Vista de quilha; 5 - Vista de proa; 6 - Primeira experiência. Ilustração de Caetano Alberto, segundo fotografias de Carlos Relvas


A examinação resultou o melhor possível, mas Carlos Relvas não a quis dar logo por concluída, pois "subjeitou ainda o seu barco a uma nova experiência, que mais eloquentemente ainda provou a excellencia da sua invenção". Segundo descrito por Gervásio Lobato, "fez voltar o barco, que tornou immediatamente á sua posição natural, o que demonstra que, mesmo no caso das ondas o voltarem, os tripulantes não correm perigo algum, agarrando-se aos arcos de ferro, visto que elle volta logo á primitiva posição". Por isso, um dia, o apelidaram de "sempre-em-pé".

O famoso pintor José Malhoa (1855-1933) desenhou, a dois carvões, cenas da experiência oficial na barra do Porto, para figurarem numa fototipia com que Relvas entendeu brindar a imprensa portuguesa, em virtude da cobertura dada ao acontecimento.

Mais tarde, o salva-vidas foi oferecido à Real Sociedade Humanitária do Porto (RSHP), na condição de apoiar os serviços dos BVP. A este respeito, Relvas é bem claro nas suas palavras, quando se corresponde com Guilherme Gomes Fernandes, carta que abaixo reproduzimos.

A RSHP, fundada a 15 de Abril de 1852, sob o lema "A Charidade com Perseverança", tinha "por fim mais immediato a salvação pessoal em casos de naufragio, de incendio, de epydemia, e de outras calamidades similhantes", dispondo, segundo fontes consultadas, filiações em Aveiro, Caminha, Matosinhos, Póvoa de Varzim, Viana do Castelo e Vila do Conde.

Em 1887, Carlos Relvas apresentou o seu barco nas exposições internacionais de Lyon e de Boulogne-sur-Mer, obtendo honrosas distinções. Antes, porém, o mesmo foi noticiado em periódicos nacionais e estrangeiros, entre os quais as revistas de divulgação cientifica Nature (Paris) e Scientific American (Nova Iorque).

No nosso país, a família real mostrou-se agradada com a invenção, mas não a ponto de influenciar a adopção do modelo. Em contrapartida, a França, motivada pela sua capacidade de auto-adriçamento, aproveitou-o para a Sociedade Francesa de Socorros a Náufragos, diligenciando na construção de seis unidades.





Parece que a embarcação nunca interveio.

Após a morte de Carlos Relvas, consta que sua mulher, Mariana Relvas, entendeu doar a mesma à comissão de socorros a náufragos da Figueira da Foz, cidade pela qual o extinto nutria afeição, sentimento transversal aos bombeiros voluntários e municipais, tendo estes, ainda em vida, lhe dedicado a realização de aparatosos exercícios, nomeadamente, arvoramentos de escadas e salvados.


Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã