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16 de fevereiro de 2024

AVEIRO 70, DAVID CRISTO E A CONQUISTA MAIOR


Pesquisa/Texto: Redacção F&H

Aveiro - cidade lendária, também no que tem a ver com a história dos bombeiros portugueses - é, em 2024, a Capital Portuguesa da Cultura. Nela teve lugar, entre 9 e 13 de Setembro de 1970, o mais ousado Congresso Nacional de Bombeiros, facto para o qual contribuíram, decisivamente, o pensamento e a acção de um notabilíssimo aveirense: o "Bombeiro sem Farda", David Cristo (1913-1987).


O Presidente da Câmara Municipal de Aveiro (CMA), José Ribau Esteves, afirmou, em recente acto público, que a organização da iniciativa Capital Portuguesa da Cultura "permite-nos cuidar melhor dos nossos valores identitários, da nossa história e especialmente do futuro das nossas terras e do nosso povo".

Não podíamos estar mais de acordo com as palavras proferidas pelo autarca, confessando que as mesmas nos impulsionam a dar início à publicação de um conjunto de conteúdos versando acontecimentos verificados antes e depois da instauração do regime democrático em Portugal, que influenciaram a adopção de novas políticas destinadas aos bombeiros.

Com efeito, Aveiro esteve na origem das movimentações que levariam, cerca de dez anos depois, à revolucionária criação do Serviço Nacional de Bombeiros, tutelado pelo Ministério da Administração Interna, a maior conquista de sempre dos bombeiros portugueses.

"Aveiro 2024 é um desafio, uma força, um grito", refere fonte ligada à iniciativa. E, em 1970, foi isso mesmo que aconteceu no XIX Congresso dos Bombeiros Portugueses.

David Cristo, jurista, escritor, jornalista, artista plástico, coleccionador, dirigente associativo e aveirógrafo, elevou, na ocasião, a voz do descontentamento e do inconformismo instalados numa certa camada geracional de dirigentes e elementos de comando que ambicionavam uma nova ordem para o sector. Fê-lo na qualidade de Presidente da Direcção da então denominada Companhia Voluntária de Salvação Pública "Guilherme Gomes Fernandes" (Bombeiros Novos de Aveiro), ao expor a sua tese intitulada "Palavras com vista à criação de um organismo superior e autónomo".

Respeitado pelos seus pares - e já bem sucedido no plano distrital, onde contribuíra para a unificação das associações e corpos de bombeiros, através da criação dos Bombeiros do Distrito de Aveiro, sob o lema "Nós queremos ser um só para melhor servir a todos" - tratava-se de uma das personalidades mais avalizadas para tentar a mudança e, por conseguinte, a melhoria das condições de vida dos bombeiros portugueses.

Também indicado para orientar a Comissão Central do Congresso, procurou inová-lo na metodologia de funcionamento, subordinando-o a um tema geral, "Fomento e Valorização do Voluntariado", o que inspirou a apresentação de teses e comunicações da parte de diferentes oradores, objectivadas pela discussão, tanto quanto possível, desassombrada, dos problemas mais prementes. O próprio grafismo do cartaz do evento, que reproduzimos, partiu de si e até esse difundiu arrojo.


"Palavras com vista à criação de um organismo superior e autónomo"

Possuidor de dotes oratórios pouco comuns, não só prendeu a atenção dos congressistas, porque assertivo na abordagem crítica efectuada, como agitou o poder tutelar, ao apontar com objectividade as deficiências da estruturação vigente, salientadas na "medular desactualização e admissível inoperância do Conselho Nacional dos Serviços de Incêndios" (criado pelo Decreto-Lei n.º 35746, de 12 de Julho de 1946).

A tese de David Cristo, reveladora de profundo conhecimento da realidade dos bombeiros em 1970 e de extraordinária qualidade de pensamento racional, contrastando esta com o conservadorismo dominante, marcou um momento de viragem.

A situação via-se caracterizada por uma "mendicidade disfarçada", conforme notado antes por outra figura não menos proeminente pela sua capacidade de reflexão, Manuel Lourenço Antunes, Presidente e Comandante dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique, a propósito das dificuldades enfrentadas pelo universo das associações.

Os meios humanos e operacionais existentes revelavam-se desajustados face às exigências colocadas por diversos fenómenos à sua volta, o mesmo se verificando com a legislação que dava suporte a toda a organização e actividade do socorro confiado aos bombeiros. O Estado não acompanhara a mudança dos tempos e das vontades e o impacto era negativo no que lhe competia "garantir o sossego público", devido à escassez de apoio financeiro e em espécie, formação, normalização de meios e de processos, telecomunicações, coordenação operacional e medidas de carácter social para um voluntariado sacrificado.

"Alguns dizem mesmo - certamente confundindo desajustamento e lentidão com imobilidade total - que a máquina está parada, enferrujada até, inútil portanto; e que, assim, a produção de socorros que, há vinte e cinco anos, foi a teleologia duma máquina hoje parada, não podendo sair dela, inevitavelmente tem que fabricar-se ao deus-dará, sem disciplina e sem norte, pela simples inspiração de momento, onde quer que a sereia ou o telefone chamem bombeiros ao local da tragédia" - enfatizou, na oportunidade, David Cristo.

A par disso, segundo o mesmo responsável, os bombeiros portugueses não contavam com "representação válida" no Conselho Nacional dos Serviços de Incêndios, mero organismo burocrático onde as nomeações dos seus membros dependiam do Ministério do Interior, diagnosticando ainda "a desarticulação dos serviços, consignados aos bombeiros, com outros serviços de socorros legalmente instituídos ou admitidos para certas contingências de sinistro ou de pública calamidade".

Impunha-se, tal como inscrito no título da tese do insigne dirigente, a "criação de um organismo superior e autónomo", aliás, necessidade reconhecida pela própria Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), em mensagem dirigida ao Congresso, subscrita pelo Presidente do Conselho Administrativo e Técnico, António Moura e Silva (1914-2006):

"(…) por não estar ainda devidamente compartimentado o sector de que dependemos, há demora nas soluções que urge encontrar rapidamente, por falta de pessoal só dedicado ao seu estudo. O número de Corporações e de Bombeiros já existentes, e o incremento que tiveram nos últimos anos, bem justificam que se crie uma Repartição, só a eles dedicada, não apenas para os casos que lhe forem presentes, mas até para tomar a iniciativa de medidas que tendam a melhorar a situação por vezes precária de alguns Corpos de Bombeiros".

Por influência de David Cristo, o assunto tomou proporção definitiva. De encontro aos seus intentos, os congressistas aprovaram a proposta inclusa na tese e responsabilizaram a LBP, nos seguintes termos:  

"Que o Congresso 70 - defira à Liga dos Bombeiros Portugueses a incumbência de elaborar um relatório, a apresentar superiormente, em que se justifique e solicite a criação, ao nível dos altos comandos nacionais, de um organismo específico, autónomo e permanente, com directa jurisdição na orgânica e na dinâmica dos bombeiros portugueses."

Deu-se assim por travada e ganha, em Aveiro, uma inolvidável batalha. A primeira de muitas outras que vieram a acontecer (Viseu 72, Lisboa 74, Guarda 76 e Estoril 78).


Foto: Arquivo F&H