Socorro sobre quatro rodas - O automóvel em Portugal está de parabéns. Faz 130 anos que circulou o primeiro carro de turismo pelas estradas nacionais, um Panhard & Levassor, adquirido na capital francesa pelo Conde Jorge d'Avillez. Tanto a introdução como a generalização do seu uso, nos hábitos dos portugueses, levaram tempo, por razões económicas. Todavia, na actividade dos bombeiros, foi adoptado relativamente cedo para transportar pessoal e material dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses (BVL), pioneiros do advento da motorização no contexto do serviço de incêndios e do serviço de saúde.


Socorro sobre quatro rodas

O automóvel em Portugal está de parabéns. Faz 130 anos que circulou o primeiro carro de turismo pelas estradas nacionais, um Panhard & Levassor, adquirido na capital francesa pelo Conde Jorge d'Avillez.

Tanto a introdução como a generalização do seu uso, nos hábitos dos portugueses, levaram tempo, por razões económicas. Todavia, na actividade dos bombeiros, foi adoptado relativamente cedo para transportar pessoal e material dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses (BVL), pioneiros do advento da motorização no contexto do serviço de incêndios e do serviço de saúde.

Para nossa surpresa, toda a narrativa histórica que existe sobre o assunto não menciona a marca do veículo que passou a guarnecer aquele Corpo de Bombeiros, quando fundada a respectiva Associação Humanitária (12 de Dezembro de 1910).

Em contrapartida, a mesma fonte revela ter sido o primeiro no país adaptado para bombeiros. Estava dotado de uma potente bomba Ferbeck (denominação comercial não identificada e que nos parece esquecida por erosão do tempo), activada pelo próprio motor do automóvel, sistema igualmente inédito entre nós.

O facto teve destaque de primeira página no jornal A Capital, logo a 24 de Janeiro de 1911, o que fez enorme sensação, pois a "bomba automóvel", assim lhe chamou aquele periódico, representava um notável avanço.

A entrada ao serviço do mais rápido meio de combate a incêndios de Lisboa e de Portugal ficou a dever-se ao Comandante Eduardo Augusto Macieira, paladino da causa dos bombeiros, que custeou a sua compra.

Reza a história que "a primeira viatura automóvel dos Bombeiros provocou o riso e a incredulidade da população em geral", uma vez habituada a ver, apenas, veículos movidos pela força do homem ou por muares.

No mesmo período, os BVL foram também inovadores ao disporem de um auto-ambulância, montado numa carroçaria Peugeot, propriedade de Eduardo Augusto Macieira desde 1904 e que a ofereceu para utilização do Corpo de Bombeiros. Destinava-se, em exclusivo, ao socorro a feridos.

O sócio Eduardo Ferreira Simões planeou e dirigiu a construção do "Papa-Léguas", nome pela qual ficou conhecida a ambulância automóvel. Tinha um "pequeno arsenal cirúrgico e todo o material para pensos e tratamentos de urgência". Além disso, "transportava macas braçais para condução de feridos, uma tenda em lona, enfim um pequeno hospital de sangue, volante", dá conta registo associativo.

E porque "não há duas sem três", o dia 12 de Dezembro de 1915 ficou marcado pela inauguração da primeira auto-maca pertencente a bombeiros. Carroçada sobre um chassis marca Decauville, adquirido em segunda mão pelo valor de 1200 escudos, implicou trabalhos de adaptação e apetrechamento que ascenderam a 700 escudos.

Técnica e esteticamente arrojados, os veículos dos Lisbonenses apresentavam-se pintados de cinzento com traços vermelhos e letras douradas, particularidade que lhes conferia uma nota de especial elegância e chamava a atenção dos lisboetas quando passavam velozes nas artérias da capital.



Auto-Bomba Ferbeck


Auto-Ambulância Peugeot


Auto-Maca Decauville


Veículo acidentado do Corpo de Salvação Pública do Porto


Velocidade, prioridade, fatalidade

Dispor de automóvel era considerado luxo e sinal exterior de riqueza. Esta verdade factual começou a reflectir-se, também, na afirmação social de algumas associações e corpos de bombeiros do país, ao nível dos seus recursos operacionais, sendo acentuada a diferença entre as instituições que se encontravam sediadas na cidade e na vulgarmente designada província.

A fotografia do topo, captada em plena Avenida da Liberdade, no dia 10 de Julho de 1927, por ocasião da abertura da Semana dos Hospitais, iniciativa do Diário de Notícias, apresenta uma coluna de viaturas dos bombeiros voluntários da cidade de Lisboa, a circular pela esquerda.

Naquele tempo, ainda não havia sido criado o Código da Estrada que alterou a posição de marcha pela direita da via pública. Surgido em 1928, através do Decreto n.º 14988, de 30 de Janeiro, para dar resposta à necessidade de reunir, num só diploma, normas legais que disciplinassem a circulação rodoviária e assuntos afins, o seu articulado omitia a categorização de veículos de socorro ou de serviço urgente de interesse público. Alterado pelo Decreto n.º 18406, de 31 de Maio de 1930, somente esta nova versão veio a contemplar brevíssimas referências ao material de incêndios, mas nos artigos que versavam a largura dos veículos e o imposto de trânsito nas estradas, estabelecendo, respectivamente, regimes de excepção em relação às saliências exteriores e de isenção no pagamento.

A motorização nos corpos de bombeiros começou a atingir maior disseminação a partir da década de 1920, sem nunca mais parar. Potenciada pela aquisição de carros usados, a preço acessível, para depois serem transformados com engenho e arte nas oficinas de terceiros ou dos próprios quartéis, a mesma mudou a realidade do serviço de incêndios e passou a gerar apreensão do ponto de vista da sinistralidade.

Transversal ao que se passava na sociedade desses anos, o número de acidentes envolvendo pronto-socorros tornou-se frequente, a ponto de ser questionada, pelos mais críticos, a mais-valia da introdução do automóvel no serviço de socorro.

A tentação de circular a velocidade elevada, a fragilidade das carroçarias, o excesso de carga que transportavam e a ausência de sistemas de segurança potenciavam a ocorrência de situações graves, vendo-se estas repercutidas em consideráveis danos materiais e pessoais.

Efectivamente, estava por despertar, intra e extra Bombeiros, uma consciência sobre condução defensiva. Entretanto, tudo ia dependendo da compreensão e civismo da população. De modo geral, esta cedia passagem às viaturas em marcha de urgência, rendida a todo o seu aparato e aos seus sinais sonoros - corneta, sineta, apito de tubo de escape e, numa outra fase, sirene eléctrica - não havendo, portanto, um tratamento específico e formal. O conceito de veículos prioritários só posteriormente viria a ser convencionado e empregue.

À medida que os carroçamentos das viaturas de bombeiros foram evoluindo nos princípios e na concepção e as leis do trânsito assumindo carácter resolutivo face aos aspectos mais débeis detectados no movimento do trânsito e no comportamento dos condutores, a realidade de outrora acabou por se inverter e ditar uma nova ordem.

A par das autoridades responsáveis pela fiscalização do trânsito, deram o seu contributo para o efeito as antigas Inspecções de Incêndios das Zonas Norte e Sul (criadas através do Código Administrativo de 1936), incumbidas de superintender tecnicamente nos domínios da aquisição, conservação e utilização do materiale ainda personalidades de renome ligadas à Instituição-Bombeiros, como foi o caso do saudoso Comandante dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, Tenente-Coronel José Francisco do Rio França de Sousa, oficial da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, que se dedicou a fazer pedagogia junto do bombeiro-condutor, e ao qual pertencem as palavras sempre actuais com que terminamos o presente artigo:

"Aqui fica o nosso convite e desafio, a todos os bombeiros, para uma melhor condução, maior respeito pelas leis do trânsito para uma melhor imagem de todos nós e benefício material das corporações que servimos e com elas as populações a nosso cargo e de quem por nós chamou por socorro."





Pesquisa/Texto: Luís Miguel Baptista
Fotos: Horácio Novais/Fundação Calouste Gulbenkian e Arquivo F&H